Por Adão Gomes
Há algo de profundamente humano em uma bota suja de lama. Ela carrega em si o peso da terra, a memória dos passos dados, a coragem de quem não teme se sujar para descobrir o mundo. E é exatamente essa metáfora delicada que "A Bota de Lama" traz para as telas da 24ª Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis: a beleza transformadora de aceitar o novo, mesmo quando ele parece estranho, desconfortável, lamacento.
A história de Taís é a história de tantas crianças brasileiras. Quantos pequenos corações já precisaram se despedir de ruas conhecidas, de árvores amigas, de abraços cotidianos? A mudança de cidade — muitas vezes imposta pelas necessidades do mundo adulto, pelo trabalho que migra, pela vida que não espera — pode parecer um desenraizamento. Mas é justamente no momento mais improvável, durante um piquenique, que Taís encontra seu portal para a alegria: um par de botas que a reconecta com a essência mais pura da infância — a capacidade de brincar com a natureza, de transformar lama em possibilidade.
Essa obra, nascida da sensibilidade da escritora amazonense Mabrini Muniz e levada às telas pelo estreante Fernando da Silva, é um grito poético de esperança em tempos de desconexão. Enquanto crianças passam horas diante de telas, Taís nos lembra que há um mundo vivo esperando por nós lá fora — um mundo que suja os pés, que deixa marcas, que ensina pelo toque e pela experiência.
Fazer cinema no Brasil não é para os fracos de espírito. É um ato de resistência, de teimosia criativa, de amor incondicional pela arte. Fernando da Silva, em sua estreia, acumula funções como quem abraça um sonho com todas as forças: direção, roteiro, câmera, edição. Não por opção de grandeza, mas pela realidade de quem constrói cinema com o que tem nas mãos e com o que pulsa no peito.
A equipe de "A Bota de Lama" é o retrato do Brasil que faz acontecer. Jovens talentos como Lívia Brito, Layse Wanderlei e Ágata Maziero dividem a tela com atores locais, provando que o cinema brasileiro não precisa de endereços nobres para ter alma nobre. Isadora Mathias e Cleiton da Silva na captação de som, Beatriz Rogovski da Silva na claquete, Karla Klaus na assistência de produção — cada nome é uma peça fundamental dessa engrenagem movida a paixão e persistência.
Da Amazônia a Santa Catarina, a Mabrini Produções carrega consigo não apenas equipamentos e contratos, mas uma missão: provar que cultura não é privilégio de eixos geográficos, mas direito de todos os cantos deste país continental.
Mas talvez o aspecto mais revolucionário de "A Bota de Lama" esteja em seu compromisso silencioso e potente com a inclusão. Legendas, tradução em Libras, audiodescrição — não como adereços de projeto, mas como parte essencial da narrativa. É dizer, sem alardes, que toda criança merece sonhar com o cinema. Que o menino surdo de Manaus, a menina cega de Florianópolis, o pai com deficiência de Concórdia — todos merecem compartilhar da magia de Taís e suas botas.
Isso é mais que acessibilidade. É democracia cultural. É reconhecer que a arte só cumpre seu papel quando deixa de ser vitrine para se tornar espelho onde todos possam se ver refletidos.
Há uma urgência silenciosa nesta história. Enquanto discutimos emergências climáticas e desconexão com a natureza, "A Bota de Lama" faz algo mais eficaz que qualquer manifesto: mostra uma criança redescobrindo a alegria no contato com a terra. Não é panfleto ambiental — é algo mais poderoso: é experiência sensorial, memória afetiva sendo plantada.
Quando Taís calça aquelas botas e pisa na lama, ela não está apenas brincando. Está aprendendo que pertencer a um lugar não depende de quanto tempo você viveu ali, mas de quão profundamente você se permite tocar por ele. Que raízes não se formam apenas pela permanência, mas pela entrega. Que a natureza — essa grande mãe paciente — sempre nos acolhe, sempre nos transforma, sempre nos ensina a recomeçar.
"A Bota de Lama" chega a Florianópolis entre os dias 10 e 18 de outubro não apenas como mais um curta-metragem, mas como um lembrete necessário: em um mundo que nos empurra para a velocidade e o virtual, ainda há espaço — e urgência — para histórias que nos reconectam com o essencial.
É o cinema brasileiro mostrando que pode, sim, falar com sensibilidade sobre infância, deslocamento, natureza e inclusão. É a prova de que não precisamos de orçamentos hollywoodianos para criar pontes entre corações. Precisamos de verdade, de olhar atento, de equipes que acreditam que cada frame importa.
Que venham mais botas de lama. Que venham mais histórias que nos lembrem de pisar na terra, de aceitar o novo, de transformar desconforto em descoberta. Que o cinema brasileiro continue sendo essa força teimosa, linda e necessária — essa arte que se faz não apesar das dificuldades, mas através delas, como quem atravessa a lama e sai do outro lado mais inteiro, mais vivo, mais humano.
Porque no fim, é disso que se trata: de calçar as botas, aceitar a jornada e descobrir que, mesmo longe de casa, podemos encontrar alegria — basta estar disposto a se sujar um pouco pelo caminho.
"A Bota de Lama" participa da 24ª Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis de 10 a 18 de outubro. Uma realização da Mabrini Produções com apoio da Lei Paulo Gustavo.
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